Uma Pequena Gnose Juvenil
em 2014/15, ainda católico, comecei a escrever uma espéice de “filosofia positiva” que fosse uma síntese de cristianismo e politeísmo. Lembrei dela com o recente texto de Petter Hubner:
Eu não acho que voltarei a esse texto para terminá-lo. Por isso, o compartilho aqui, e espero que sirva de inspiração para alguém.
Filosofia Positiva
No início, há o Pai, o Filho e o Espírito Santo
No início, há o Amor, não há o Reino
Há a Paternidade, não há a Deidade
Há a Interpenetração e não o Domínio
Há infinitas e incontáveis filhas de Deus: Amor, Majestade, Glória, Luz, Inteligência, Poder, Doçura, filhas sem número[1]
E entre as filhas, o Filho é uma filha, primeira filha: Sabedoria, Sapientia, Sophia, Wisdom, Weisheit.
Cada filha é Deus e Deus [é] mais que todas, e todas mais do que si mesmas: se perdoaria quem achasse que entre as filhas houvesse filhos e filhas e incesto perpétuo fructificando: pois ao olhar uma só, ela se revela várias, e ao aprofundar o olhar novas filhas nascem à vista, embora sempre já tiveram sua geração na única geração do Filho pelo Pai na unidade do Espírito Santo.
No início, há o mundo divino, a família divina, não ainda sagrada (separado de que profanidade?), não ainda propriamente divina (Deus de quem?), há a família do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
E em suprema insistência no seu glorioso haver, o Pai dá ao Filho todo seu ser, e a doação ela mesma não escapa de receber o mesmo presente, sendo o Espírito Santo.[2]
E em suprema insistência no seu glorioso haver, o Pai dá novamente ao Filho todo seu ser, e a doação ela mesma não escapa de receber o mesmo presente, sendo o Espírito Santo. E esse ser novo se chama Corpo ou Mundo ou Céu e Terra.
E nesse Outro, nesse Outro ser há a separação: e Pai e Filho e Espírito Santo é Deus do Mundo, e no mundo se separam as filhas de Deus, cada uma para sua casa própria.
Esse mundo tem seu ser ancorado no centro, no peso central, casa da Majestade e da Transcendência de Deus sobre suas filhas, da filha de Seu próprio excesso, que não difere d’Ele mesmo. E nessa separação a chamamos de Caos, e de o lugar do inferno, mas não há inferno, pois não há [ainda, em nossa visão] danação nem espírito danado.
A concentração da transcendência permite a separação das demais casas, e ela mesma, sem limite e excedendo a tudo, sendo separada, é fixada dentro de limites exteriores, pelas mansões das outras filhas, que se ordenam em esferas concêntricas até chegar à esfera última, a casa da filha Ordem.
Qual casa é o lugar do céu e a aparente casa de todas as outras filhas, cujas casas elas preencheram com sua luz, mas elas mesmas, sóis inseparáveis, estão todas reunidas no céu em um segundo Corpo e um segundo Mundo chamado Igreja. E essa é a casa do Filho. Aqui está cada filha novamente, mas veja como elas estão: cada uma casada com seu grande Irmão e Mãe, a Sabedoria. Filha de filhas, filha composta de filhas, a Igreja aparece como uma suprema construção onde cada parte é ela mesma uma imagem do Filho, uma perfeita imagem da perfeita imagem do Pai. E no ápice da Igreja há uma pedra que de novo a representa toda, a casa uniquíssima do filho, seu próprio corpo, chamado J*E*S*U*S, seu próprio novo ser. E esse é o verdadeiro centro do Novo mundo: local não de sua diferença e alteridade, o Caos, mas de sua insistência no glorioso haver do Pai, do Filho e do Espírito Santo.[3]
E na sua suprema insistência no seu glorioso haver, o Pai dá o ser novo ao Filho, pelo poder do Espírito do Santo. E na Igreja se discerne inseparável do centro filial uma jóia que é o princípio de seu segundo ser, o veículo do grande presente do Pai. E essa jóia se chama M*A*R*I*A.
Tão brilhante e poderosa que é essa jóia, que ela pareceria também ser o Filho, não fosse ela escondida, protegida e conferida a transcendência por outra jóia, mais opaca e dura. E esse cristal se chama J*O*S*É.
E o bom olho discerne[4] na Igreja princípios e veículos corpóreos para um novo ser para todas as grandezas do Filho, para todas as filhas que ele colhe no seu seio[5]. E há o princípio de sua Realeza, que se chama D*A*V*I, e o princípio de sua sabedoria, que se chama M*O*I*S*É*S, e o princípio até mesmo de sua filiação, que se chama A*B*R*A*ÃO. E o princípio de sua vida, chamada E*V*A, o princípio de seu espelhamento do pai, chamado A*D*Ã*O, o princípio de sua custódia da vida terrestre, chamado N*O*É. O princípio de seu sacerdócio, chamado M*E*L*Q*U*I*S*E*D*E*C.
Mas todas as partes do Corpo do Corpo, da incorporadíssima Igreja, desfrutam desses bens e se percebe partindo do ápice novas pedras, novas pontes e rios que as comunicam para o resto: a estes se dá o nome de santos, aos princípios, patriarcas. Há doze pontes principais chamadas apostólicas que percorrem o corpo inteiro e não há pedra que por elas não é tocada[6].
Mas como cabem as infinitas e inúmeras filhas de Deus na ordenada e finita Igreja? Ao novo ser pertencem também os inúmeros anjos: se ao Filho a Igreja e o Seio da Igreja é dado, e a doação ela mesma não pode deixar de também receber o presente, ela recebe as inumeráveis hostes angelicais, cuja inumerabilidade faz ponte entre a infinidade das filhas e a finitude do corpo, e cuja espiritualidade faz ponte entre a união divina e a separação da matéria. Estes Anjos todos são também pedras pertencentes à Igreja, que a unem à insistência do Pai, do Filho e do Espírito Santo no seu glorioso haver. Discerne-se uma em particular, que liga M*A*R*I*A ao Filho, chamada G*A*B*R*I*E*L.
Eis aí o Novo Ser, o Mundo, a Igreja, os Anjos novo presente e mesmo presente de ser do Pai ao Filho pelo Espírito Santo. E na suprema insistência de seu glorioso haver o Filho aceita o presente do Pai[7] e beija a sua noiva, se unindo em casamento com ela[8], todas as filhas de Deus se unindo às imagens do Filho de Deus[9], um corpo só[10], ligado por núpcias e núpcias de núpcias, criado e se procriando, nenhum órgão oferecendo resistência[11], toda parte recebendo influxo de divindade, todo membro se dando à união, gozo da criação[12].
E nesse casamento e nessa festa eterna[13] Deus tem Filhos e Filhas, cada uma à sua imagem, cada um livre, recebendo eles mesmos um novo ser deles, o ser do mundo, novamente. Só uma noiva que livremente se dá e tem seu próprio ser está à altura do Filho..{liberdade e geração, todas as sementes em Adão}.. E esse terceiro ser se chama Tempo ou História e com ele há nova separação, a distensão da separação do mundo divino do mundo corpóreo em começo, meio e fim históricos, medidos pela sucessão de dias e noites e tempos e meio tempos[14].
Com o tempo nasce também o pré-cosmo, ou o processo, ou a criação e nele a Igreja se quebra em um milhão de pedaços distribuído ao longo de sua extensão indefinida[15]. Nele estão as filhas Caos e Ordem não separadas nas suas mansões, mas misturadas em toda parte, inseparáveis na sua extensão temporal e espacial indefinida.[16]
E no centro do pré-mundo, do corpo histórico, está JESUS e partindo dele sai uma luz que ilumina o passado e o futuro e as direções várias e quaisquer do espaço indefinido. Essa luz chega até aos primórdios e começos temporais do pré-cosmo, onde se encontram separados e de novo ser próprio dotados, as hóstias angelicais.
Inúmeros anjos! A cada um, uma filha de Deus atende, eles se organizam em hierarquias, que espelham e antecipam a estrutura da Igreja, agora futura, na ilha do porvir. E a Luz de Jesus Cristo os ilumina, primeira luz de seu novo ser, luz que eles reconhecem pela luz da Santíssima Trindade que habita neles, lhes dando ser, mente e vontade. E a luz brilha na luz, mas nem em todo caso nasce nova luz: a luz exterior de Jesus é a mesma, mas muito diminuta, separada por dois novos seres, o Corpo e a História, da pura luz do Filho. E muitos anjos, quase todos, correm para essa nova luz se regojizam de ter a luz dentro deles também fora deles, para dentro e fora serem todos abraçados por uma e a mesma luz, e inventam a adoração, o culto e a religião.
Mas um anjo, e com ele vários, suspeitam dessa diminuição e não se submetem à luz inferior, corporal, inferior à luz divina interna a eles e também ao seu próprio estatuto espiritual. Que salto no abismo, que aventura despropositada, essa luz divina porém pequenina. A razão angelical não reconhece a sua conexão, falha em ver a harmonia trinitária que por tudo ressoa. E ela diz: Não.[17] Não preciso dessa pequena luz, tenho a minha própria. Não necessito desse ser corpóreo, tenho um ser espiritual. Não acredito que Deus tenha se reduzido a tanto. O Deus em Mim, a Luz constitutiva, contra ele não me rebelo, de modo algum! Como poderia me rebelar? Mas essa identificação mesquinha, essa redução ridícula, deíunculo hominídio, demoniozinho, quem há de aceitar por Divino? O Divino se repandiu[18] em mim e nós, em cada de um de nós, livres potências e tronos da deidade: a piedade perante a luz e o amor interiores que nos unem previne confundir qualquer coisa exterior, submetido ao caosmos dos devires históricos, com o Deus que somos nós. Esse pretendente rejeitamos e nosso ser de seu separamos. Que ele tente construir sua Igreja: nós reinaremos sobre os fluxos em meio ao qual ela se constitui, livres espíritos separados deste engodo da matéria. E de nossa alta, celeste e aérea posição, defenderemos a verdadeira piedade e luz interior e tudo quanto nos é possível (sem nos misturar à asca podridão deste pré-cosmo) faremos para destruir sua religião e culto, falsas piedades, sombras que se fazem de luzes, coisa de idiota.
Assim usou o chamado diabo de sua liberdade, e assim Deus lhe concedeu. Do interior de seu coração a luz lhe respondeu: “Que assim seja. Quereis um ser próprio? Te separarei da minha maravilha de mundo. Quereis habitar em si? Te darei um reino próprio. Quereis um mundo onde eu não estou diante de ti? Te darei o inferno, de cuja área me retiro. Te importa tanto este novo ser seu? Então farei com que ele afete seu espírito e para ti darei ao seu caosmo, o inferno, um poder que não botei em nenhuma outra parte do pré-cosmo: o poder de afetar espíritos[19]. E o mundo á tua volta que tanto desejas sem Deus, entrará para seu interior, obscurecerá a sua luz e te roubará a razão. Serás louco, mentiroso, blasfemador e assassino, mil vezes mais do que já és[20]. Toda a luz e piedade que tinhas ao ser criado para o bem da Igreja, perderás. Minhas filhas ainda te acompanharão, mas serão mestras e torturadoras de ti, energias de danação e condenação. Seu maior poder será de fingir me servir, e não poderás fingir sem ao mesmo tempo realmente servir a Jesus Cristo e minha Providência. Tolo, ouça agora o único prazer que terás inventado: o gargalhar dos justos, Schadenfreude angelical[21].
E assim foi determinado o destino de Satã. E o bom e fiel olho o discerne com suas hostes e as almas que enganou no inferno da criação, semente do caos final, onde ele arderá em meio a transcendência do Mundo, o ponto da alteridade entre o Corpo e a família do Pai, o Caos. Desta maneira o plano eterno se ajusta ao devir histórico: a imagem que fazemos dele muda. E quando Adão cair veremos com Julian de Norwich Jesus cai não só num corpo, mas num corpo mortal, sacrificial, crucificado. E a luz que Ele repande pela História inteira se tingirá do vermelho de seu sangue e se abrirão no seu Corpo final as feridas que admitem os pecadores arrependidos.
Mas retornemos à suprema insistência do Pai e o glorioso haver no qual ele dá o ser, o novo ser, e o ser histórico ao Filho na unidade do Espírito Santo. E nesse glorioso haver ele criou no começo temporal da criação uma imagem de sua imagem final, um ponto no caosmo a partir do qual o caosmo ele mesmo parecia um cosmo, parecia o cosmo final, em torno do qual uma aparente ordem antecipava a ordem que é o propósito de toda a história. E lá como imagem de suas filhas superabundantes, não fez casas separadas, mas uma natureza sobreabundante, inanimada e animada, toda ela uma mistura do caos e da ordem, no todo e em cada parte. E ele pôs seus anjos fiéis a ministrarem a ligação entre Si e esse novo mundo, essa imagem da imagem da Imagem de Si. E em meio a tudo, ele escolheu um lugar onde a ordem sobrepunha o caos, e chamou Eden[22], e lá pôs Adão e Eva, primeiras pedras da Igreja, não as fundamentais, mas as primeiras condições do único e verdadeiro fundamento, Jesus Cristo.
[1] A imagem das filhas tomei de God and the Goddesses, que li no final do ano passado. A autora discute como a imagem de filhas de Deus era usado comumente para personificar diversos atributos divinos - as virtudes, a pobreza, a caridade, a sabedoria etc... Ela especula que isso era teologicamente safe na alta idade média porque claramente não atingia a unicidade do filho, e isso talvez fosse uma razão porque houvesse uma tendencia preponderante para a personificação feminina de atributos divinos. Ela dá algumas outras razoes para essa preponderância, mas não as lembro agora no momento. De qualquer maneira, eu tomei a ideia e ran with it.
[2] Primeiro passo do Sistema e forma de todos os desenvolvimentos seguintes. A Trindade e a vida interna de Deus é o mistério no qual todos os outros mistérios se fundam e são desenvolvidos. Em sintonia com um sistema tipo idealista-alemão, é tanto o primeiro princípio quanto o princípio de inferência a partir do primeiro princípio, no espírito de bonum diffusuvm sui.
[3] Como aqui fica claro, o que procede imediatamente do amor paterno não é este mundo nosso, mas o que chamamos mundo por-vir. Ele apenas atende à expressão plena da substância divina e o princípio racional da plenitude. O mundo histórico será deduzido como uma pré-condição para o mundo por-vir.
[4] Ver a penúltima hipótese do Parmênides para o emprego dessa noção de “bom olho discerne”. Também aplicável a o que se disse antes da infinita multiplicidade das filhas.
[5] Generalização da aplicação que São Luís de Montfort faz da imutabilidade da vontade divina para declarar Maria a mediadora de todas as graças: se pela vontade divina Jesus sempre veio, vem e virá por meio de Maria, então também a realeza messiânica sempre veio, vem e virá por meio de Davi, a Lei por meio de Moisés, a raça humana por Adão e Eva, a proteção do dilúvio por meio de Noé etc...
[6] Extra ecclesiam nemo salvatur.
[7] Nova etapa do sistema, passagem á criação
[8] Cristo é esposo da Igreja
[9] Cristo é esposo de cada alma Cristã
[10] A Igreja é o Corpo de Cristo
[11] Ver Milton em Paradise Lost (Livro IV, acho) descrever o amor entre os anjos
[12] Ver a representação de Chokmah por Alan Moore em Promethea, a perpétua união criadora entre Pan e Selene
[13] Filho pródigo; casamento do Cordeiro de Deus.
[14] “tempo, tempo e meio tempo” do Apocalipse
[15] Adaptação da queda originária postulada por Orígenes: em vez de ter uma união de todos os seres racionais no começo, a mônada noética, o que há é uma união no futuro eterno, e a criação é a passagem da união eterna para a distensão histórica, a partir da qual a união passa a ser algo futuro.
[16] Como o nosso mundo não procede imediatamente de Deus, sua física não necessita demonstrar a beleza e exatidão matemática que os antigos e medievais viam em seu cosmos. Estamos a três degraus do Pai na escala de semelhanças.
[17] Creio importante colocar a rebelião Satânica em direta conexão com a Incarnação. Fora dela, a rebelião aprece inteiramente vã e inútil e quiçá impossível. Ela nem pode se expressar direito, como se vê nos discursos vãos dos demônios nos primeiros dois livros de Paradise Lost. A “O que fazia Deus antes de criar o mundo?” é preciso ajuntar “o que fazia o Diabo antes da criação do homem?” como uma pergunta filosófica de relevo. Por falhar a pensar disso é que nascem as concepção de Lewis como um ser em-si contraditório, que me parece um pouco barata.
[18] A palavra existe? Em que palavra estou pensando? Significando estender-se. [30.08.2023: acho que estava com “expandir” e “resplendente” em mente.]
[19] Como o fogo infernal pode afetar as almas danadas se pergunta. Perguntemos às almas, que durante sua vida agiram como se as coisas sensíveis pudessem afetar a sua alma. Deus nada mais faz do que confirmar a sua hipótese.
[20] Pior pena que qualquer sofrimento patético, é ser condenado à maldade absoluta, ao fracasso completo na busca por ser bom.
[21] Uma confusa imagem dos salmos
[22] Milton tem convincentes raciocínios de porque é necessário por Adão e Eva num jardim.